a dignidade da diferença
17 de Junho de 2015

 

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Fury (1936), alinhado, juntamente com You Only Live Once e You and Me, na trilogia social de Fritz Lang, produzida nos thirties, descreve a história do linchamento de Joe, injustamente acusado de um rapto. Conseguindo sobreviver ao incêndio da prisão onde se encontrava detido, Joe, obstinado pela sede de vingança, esconde de todos que escapou com vida, organizando em segredo um método para acusar de tentativa de linchamento, e à consequente condenação, os cidadãos responsáveis pelo sucedido. Poder-se-á afirmar que se trata, em suma, do testemunho da democracia no conflito da lei com a força colectiva. Samuel Fuller, experiente cineasta nesta matéria, não gostava muito do filme de Lang. Comparando-o com outro filme (notável) sobre vítimas de linchamento popular - Ox-Bow Incident (1941), de William Wellman, que narra a história do enforcamento de três homens inocentes -, considerava que Fury perdia para o filme de Wellman por não mostrar relações honestas e humanas. Fuller não compreendia que um grupo de pessoas que julgaram ter morto um culpado pudessem chorar, justificar-se e ter medo quando se apercebem que a vítima está viva. Em Ox-Bow Incident, pelo contrário, as relações são bem mais verdadeiras (os carrascos bebem e esquecem os inocentes enforcados). A película de Wellman seria o exemplo de um filme adulto, Fury o filme hollywoodiano por excelência. O segundo canal da RTP exibiu a fita no último sábado, oferecendo uma boa oportunidade de reavaliação. Estarei por conseguinte em condições de afirmar que não consigo concordar com Samuel Fuller e advogo ainda hoje que Fury será um dos mais poderosos e vertiginosos trabalhos sobre o modo como pacíficos e disciplinados cidadãos se transfiguram numa odiosa multidão, detentora de uma obstinada sede de justiça. Esta ideia sai reforçada por essa admirável mise-en-scène que vai deixando sinais bem ilustrativos de uma profunda insanidade, atestada na vertigem dos destinos individuais e colectivos, onde se perde a lucidez e se desafiam os valores morais. Também terá escapado a Fuller que Fury será uma das obras mais sombrias e atormentadas de Lang, pois não existe nada que distinga a vingança cruel de Joe da irracionalidade e da fúria justiceira dos seus linchadores. Apesar de terem sobrevivido à tempestade, Joe e a sua mulher Katherine são, no final da história, pessoas completamente diferentes. Perderam a capacidade de acreditar nos outros. Nesse delírio e nesse destino devastadores, foi-se destruindo a sua fé na justiça das sociedades humanas. Fury, um filme hollywoodiano?

 

 

publicado por adignidadedadiferenca às 23:23 link do post
18 de Setembro de 2011

 

 

Depois de ter recusado a proposta de Goebbels para dirigir o cinema do III Reich, Fritz Lang realizou em França, antes da partida para a América, este singular, pouco visto e notável Liliom (de 1934). Sob uma aparência ligeira, simpática e festiva, o filme esconde uma profundidade e complexidade que só os espectadores mais atentos terão capacidade para decifrar. Mestre da concisão narrativa – como se veria nos seus filmes americanos – Fritz Lang questiona, como acertadamente referiu Bénard da Costa, a incompatibilidade entre um Deus generoso e um Deus justiceiro. Liliom, constantemente acossado pela punição policial, não tem descanso para lá da morte, permanece a eterna visão do Inferno. No além, continua a ser perseguido pela justiça e a suprema ordem moral utiliza os mesmos procedimentos e burocracia administrativa. Uma ordem moral subvertida, a quem interessa sobretudo os sacrifícios e muito pouco a generosidade – basta, para chegarmos a esta ideia, compreender a cena dos pratos da balança. Inicialmente feérico, impressionista, homenageando o cinema francês e seu grande mestre Renoir, o filme, assim que cresce de intensidade a relação entre Liliom – provavelmente, o papel da vida de Charles Boyer - e Julie, vai-se densificando, escurece, sobe de tensão, provoca pequenas rupturas na relação entre os personagens, até culminar na fundamental oposição entre o lugar onde Liliom se diverte e o espaço policial: falsamente moralista – veja-se a sequência que revela a diferença do tratamento dado a um visitante rico e a um vagabundo - proibitivo e punitivo. Liliom, com uma magnífica fotografia a preto e branco, é, como vimos, uma admirável denúncia da repressão que se manifesta sob a cobertura de uma ideia total de justiça. Vimo-lo ontem à noite numa sala da Cinemateca Portuguesa.

 

05 de Março de 2011

 

Almas Perversas (Scarlet Street), estreado em 28 de Dezembro de 1945, é um remake do magnífico La Chienne, de Jean Renoir. Saiu finalmente em DVD (a boa notícia) numa cópia sofrível (não há bela sem senão). Nele se conta a história de Christopher Cross (interpretado pelo genial Edward G. Robinson), protagonista de uma vida banal na qual transporta o ónus de um casamento infeliz. Mas tudo irá mudar quando conhece Kitty (interpretada por Joan Bennett, fabulosa na densidade que transmite à personagem e na ideia de mal que lhe consegue associar), com quem irá ter uma aventura que o conduzirá ao abismo. Pintor com talento, Cross descobre que Kitty (influenciada por Johnny, o amante) se aproveita dos seus quadros e os vende como se as obras fossem da autoria dela. Porém, crédulo, acredita que o seu amor é correspondido e permite que Kitty goze os louros da fama conquistada, até que perde completamente o controlo quando o mundo desaba à sua volta ao descobrir a traição de Kitty e a paixão desta por Johnny.

 

  

 

Se Jean Renoir aproveita La Chienne para ridicularizar instituições, através de uma análise anárquica e destrutiva sobre as ideias de justiça, trabalho, família ou casamento, Fritz Lang explora assombrosamente o abismo que vai consumir Christopher Cross, abalando irreversivelmente a sua estrutura moral e a sua dignidade enquanto pessoa, e daí constrói, como acertadamente referiu João Bénard da Costa, uma avassaladora meditação moral sobre a solidão, o medo e a culpa, assinando uma das suas obras mais pessoais. Atormentado pelo diálogo Kitty-Johnny, possuído pelo ciúme e pelo desejo de vingança, Cross é atraído por uma força destrutiva que o transforma no assassino de Kitty e no responsável pelo enforcamento de Johnny (suprema perversidade e inquietante ambiguidade de Lang, ao conseguir que ninguém sinta remorsos pela execução de um inocente). Mas a dupla morte de Kitty e de Johnny não sacia o sofrimento de Chris Cross, e o filme termina com a impotente angústia do protagonista; Cross jamais conseguirá calar as vozes do par naquele diálogo que tanto o atormenta.

15 de Março de 2009

 

Hoje estou aqui para celebrar o verdadeiro acontecimento que é a edição nacional em DVD de dois dos mais extraordinários e importantes filmes do cinema mudo (quero dizer: de todo o cinema). Falo de «Os Nibelungos» (1924) - dividido em duas partes: «A morte de Siegrfried» e «A vingança de Kriemhild» - do genial Fritz Lang e de «Fausto» (1926) do não menos genial F. W. Murnau.

Em «Os Nibelungos» assistimos à oposição entre o mundo masculino de «A morte de Siegfried» e o mundo feminino de «A vingança de Kriemhild», e apercebemo-nos do extraordinário jogo de contrastes entre luz e sombra: a luminosidade da 1.ª parte «contra» o mundo sombrio e interior de «A vingança de Kriemhild».

 

Muito haverá para dizer sobre esta saga sumptuosa e deslumbrante. Fritz Lang, com uma majestade arquitectónica, começa por nos contar a história épica de um herói mítico e conclui, na 2.ª parte, com um retrato abissal e dramático de uma vida organizada sob o espectro da vingança, do conflito, da morte e das paixões extremadas.

Todo o peso da mitologia está presente neste filme, o qual não deixa, apesar disso ou por essa razão, de ser profundamente humano e de nos tocar de forma tão intensa. E mais não conto porque o essencial mesmo é ver o(s) filme(s).

O mito de Fausto está, por sua vez, presente naquele que é o último filme alemão de Murnau (uma superprodução da época) – autor, entre outros filmes memoráveis, das obras-primas «Nosferatu», «Sunrise» e «Tabu» -, o qual se serve, essencialmente, das adaptações de Goethe e Christopher Marlowe, para completar esta magnífica obra.

 

Se outras e boas razões não houvesse, só o facto de termos, finalmente, acesso a este filme - tantas vezes inacessível aos olhos que o quiseram ver – merece esta pequena celebração.

Claro que este texto só faz sentido para quem tem memória (e se serve dela) e sabe que o cinema já fez mais de 100 anos. Para os outros, espero que um feliz acaso os faça mudar a sua opinião e se dedicam a algo mais do que ver, apenas, os filmes realizados nos últimos quatro ou cinco anos (mais do que isso já será, para eles, um filme «antigo»).

 

publicado por adignidadedadiferenca às 17:33 link do post
11 de Fevereiro de 2008

Gene Tierney (actriz)

 

 

 

 

Inesquecível em:

«O fantasma apaixonado» de Joseph L. Mankiewicz, «O regresso de Frank James» de Fritz Lang, «Amar foi a minha perdição» de John M. Stahl e «Laura» de Otto Preminger

 

 

publicado por adignidadedadiferenca às 00:37 link do post
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