a dignidade da diferença
23 de Março de 2023

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Avessos à ideia de grandeza, à vaidade, ao estatuto e à pretensão, considerando o orgulho supérfluo e desadequado, cultivando o sujeito quotidiano e o propósito acessório, os breves textos reunidos neste livro pautam-se por exíguas descrições e despojados apontamentos sobre pequenas coisas ou objectos insignificantes, que, praticamente ignorados, resistem discretamente à sofreguidão do tempo. Fosse Robert Walser músico e o que se escutaria nos seus livros seria música de câmara rendilhada em pequenas subtilezas. Delicada, melancólica, miudinha e penetrante, diluída em gotículas e mantida num aparente secretismo, que é dissipado, no entanto, quando, recordando-a, me apercebo que a marca da sua doçura e fina ironia ficou cá.

publicado por adignidadedadiferenca às 20:24 link do post
09 de Novembro de 2016

 

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Nós ensinamos a guerra.

Nós construímos a destruição.

Estamos todos muito orgulhosos dos nossos pais,

edificaram um império

com o fio de prumo da espada

e as roldanas ergueram as cabeças tenras nativas

como torrões levantados do solo,

recebendo cartas de aplauso

e terras de comendas,

lavrando solos e espevitando os campos

com o adubo da cinza mortuária.

 

Quando observo o lento corrimão da história,

filhos meus, sou renitente a deslizar a mão

seja para subir seja para descer,

e inglório me estaco no degrau pungente de mim mesmo

e acendo uma luz tíbia de náufrago

na grande escadaria da noite,

mar crespo

colapso dos meus pés enfim perdidos.

Excerto de «Dos Fuzilamentos da Montanha do Príncipe Pío»

 

publicado por adignidadedadiferenca às 23:34 link do post
13 de Dezembro de 2014

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TANGENTE MÃO, PRELÚDIO DE UM BEIJO,

Ancinho que perpassa branda terra,

Leveza que alivia dura guerra,

Pureza que me rasas e eu desejo,

Tangendo se me tocas eu me envolvo

Como um bicho de conta que se anilha

E roda de brincar se faz, ervilha

Nas mãos de uma criança, adstrito polvo.

Ó nome que és na boca apertado,

Estreiteza que me cinge e me reduz,

Amálgama de bicho e sóror luz,

Ó silfo que és sentido e não pesado!

À letra tu me levas e te trazes

Ó deusa, e se és não deusa em mim te fazes.

Daniel Jonas,

 

publicado por adignidadedadiferenca às 19:32 link do post
05 de Agosto de 2014

 

 

«- Se eu quisesse, enlouquecia. Sei uma quantidade de histórias terríveis. Vi muita coisa, contaram-me casos extraordinários, eu próprio… Enfim, às vezes já não consigo arrumar tudo isso. Porque, sabe?, acorda-se às quatro da manhã num quarto vazio, acende-se um cigarro… Está a ver? A pequena luz do fósforo levanta de repente a massa das sombras, a camisa caída sobre a cadeira ganha um volume impossível, a nossa vida… compreende?... a nossa vida, a vida inteira, está ali como… como um acontecimento excessivo… Tem de se arrumar muito depressa. Há felizmente o estilo. Não calcula o que seja? Vejamos: o estilo é um modo subtil de transferir a confusão e violência da vida para o plano mental de uma unidade de significação. Faço-me entender? Não? Bem, não aguentamos a desordem estuporada da vida. E então pegamos nela, reduzimo-la a dois ou três tópicos que se equacionam. Depois, por meio de uma operação intelectual, dizemos que esses tópicos se encontram no tópico comum, suponhamos, do Amor ou da Morte. Percebe? Uma dessas abstracções que servem para tudo. O cigarro consome-se, não é?, a calma volta. Mas pode imaginar o que seja isto todas as noites, durante semanas ou meses ou anos?»

publicado por adignidadedadiferenca às 14:42 link do post
02 de Fevereiro de 2014

Incluído numa recolha de poemas dispersos dos anos 70, do século XX, publicada já num período de completo amadurecimento estilístico do seu autor, Pornocine é aqui recordado como um fiel e conseguido exemplo da poesia feroz, comunicativa, inesperada, solta e obstinada de Alexandre O’Neill; autêntico canto maior da nossa literatura. Em suma, um testemunho feliz de uma escrita rica e complexa, uma linguagem nova, avessa ao conforto e às boas maneiras, plena de contradições, desencantos e portentosas invenções formais (uma coisa em forma de assim…), que merece um lugar único e privilegiado na história da poesia portuguesa e da sua modernidade, e não esse imperdoável e vil esquecimento a que injustificadamente tem sido votada mais recentemente.

 

 

Ah, deixem-se de abraços e de beijos,

de grandes planos de frentes e traseiros!

Não se lambam sob a luz cruenta

dos projectores.

Poupem-nos a essas cópulas

tecnicolores.

Na posição de «o missionário», denegrida,

ainda se move muita gente, muita vida.

                                       

                                        E se a Carole não gosta, gosta a Ana!

                                        E viva o sexual fim-de-semana!

 

A gratificação oral, que põe os olhos

do homem iguais aos do carneiro

mal morto,

é barco balanceiro

que encontra, no cinema, alguns escolhos,

por isso não se pisam os canteiros

ao entrar em tal horto.

                                        E se a Carole não gosta, gosta a Ana!

                                        E viva o sexual fim-de-semana!

 

Das cruas sodomias

pé ante pé a câmara se aproxima.

Por ângulos interessantes,

quase espiritualizam os amantes.

Bertolucci emprega a margarina

no seu escabroso edificante.

Porém, lambe de mais o filme,

lambe de mais a cria,

e é assim – clássico! – que já está na estante…

 

                                        E se a Carole não gosta, gosta a Ana!

                                        E viva o sexual fim-de-semana!

 

Mais corajoso – e feio – o Pasolini serve-se

do amor com truculência, verve

e poucas ilusões.

Nele, a fornicação é quase sempre assalto

a privilégios.

Talvez por isso não mandem os colégios

Ver as suas sessões…

                                        E se a Carole não gosta, gosta a Ana!

                                        E viva o sexual fim-de-semana!

 

De modo que a câmara aguenta

mais depressa a velatura que a franqueza.

Para que Eros durma em nossa casa

É preciso saber abrir-lhe a cama

E pôr-lhe a mesa…

 

                                        E se a Carole não gosta, gosta a Ana!

                                        E viva o sexual fim-de-semana,

                                        eroturismo à portuguesa!

27 de Outubro de 2013

  

 
«O que eu queria era pegar naqueles três acordes e aplicar-lhes as palavras. O meu amigo e professor Delmore Schwartz tinha escrito algumas novelas que me tinham impressionado tanto que pensei poder tocar aqueles acordes de que eu tanto gostava, satisfazendo ao mesmo tempo aquela parte de mim que desejava ser escritor.Podia juntar as duas coisas, parecia-me fácil, e ter assim tudo aquilo de que verdadeiramente gostava: a guitarra eléctrica, aqueles acordes e as palavras. Mas não queria parecer-me com todos os outros»
Lou Reed, Superstars, Andy WWarhol e os Velvet Underground (traduzido por João Lisboa). 

 

19 de Outubro de 2013

 

 

Dos lugares que os homens criaram para se abrigar, o café é o que mais rua tem. Por isso, Mário Cesariny gostava tanto de cafés. Aí, sentia-se onde a poesia estava, onde «sempre esteve». Aí, lembrando Lautréamont, podia fazê-la em comum. Foi em cafés que escreveu os poemas. Foi em cafés que conversou com os amigos e até com os inimigos. Foi em cafés que fitou os corpos com um olhar que os tornava mais visíveis. Era nos cafés, e no que eles tinham de rua, que se sentia verdadeiramente em casa. Cafés cheios de fumo e de fadiga e de fuga e de fúria. Cafés onde se estava porque não havia sítio melhor para estar. Cafés que resumiam o seu entendimento da vida: café-manicómio, café-convés, café-asilo, café-escritório, café quase salão e, pois claro!,  café-de-engate. Viciado em cafés, nunca o vi aí tomar um café. Pedia uma água mineral e, muitas vezes, usava-a para lavar as mãos, porque desconfiava que, depois de bebida, a garrafa era enchida pelo dono da casa. Ria e, enquanto a vertia nos dedos em ablução ritual, olhava à volta para a «malandragem» que habitava as mesas e exclamava: «A água é a única coisa que não é de confiança neste café». Nos tempos gloriosos do grupo surrealista, era nos cafés (Herminius, Royal, Gelo) que se incendiavam a eles próprios e era a partir dos cafés que queriam incendiar o mundo. Depois, toda a sua vida foi vivida, nocturnamente, em cafés, até que os cafés acabaram e ele começou a acabar como eles.

José Manuel dos Santos, O Espelho Vazio

03 de Fevereiro de 2013

 

 

The Coming of Wisdom with Me

Though leaves are many, the root is one;

Through all the lying days of my youth

I swayed my leaves and flowers in the sun;

Now I may wither into the truth.

 

Com o Tempo a Sabedoria

Embora muitas sejam as folhas, a raiz é só uma;

Ao longo dos enganadores dias da mocidade,

Oscilaram ao sol minhas folhas, minhas flores;

Agora posso murchar no coração da verdade.

 

W. B. Yeats, Poemas, Tradução: José Agostinho Baptista. 

20 de Abril de 2011

  

 

«Rainer Maria Rilke (1875-1926), poeta de dimensão universal, nascido em Praga quando esta cidade ainda pertencia à Áustria, tendo vindo a morrer na Suíça, ergueu na sua obra maior As Elegias de Duíno a grande sinfonia da sua vida e do seu tempo, percorridos pela inquietação e pela angústia, dilacerados pela I Guerra Mundial, envoltos nas vagas das novas filosofias – Kierkegaard, Nietzsche, Bergson -, atraídos pelas novas descobertas no campo da psicologia humana – Freud – e no campo da ciência e da tecnologia. Se a vida e a morte impressionam profundamente a sua sensibilidade, não menos o fazem o amor e a dor, a alegria e a tristeza. Na genial e dolorosa experiência da escrita de As Elegias de Duíno, Rilke encontra o elo de união entre todas essas realidades diversas e o tom elegíaco, expresso em ritmos livres, dá lugar ao tom elegíaco-hínico, uma vez que o equilíbrio encontrado se exalta e proclama. A amplitude dos versos ora se expande ora se concentra num ritmo mais sincopado que inclui elipses e alterações da estrutura sintáctica. Rilke dá continuidade, nesse tom elegíaco-hínico, à herança de Hölderlin, poeta que lê fascinado e a quem dedica um poema de homenagem em Setembro de 1914, que noutro lugar divulgámos em nova tradução.»

 

Maria Teresa Dias Furtado, introdução a As Elegias de Duíno, Assírio & Alvim.

publicado por adignidadedadiferenca às 23:42 link do post
15 de Fevereiro de 2011

 

Remorso Póstumo

 

Quando um dia dormires, ó bela tenebrosa / No fundo de um jazigo de mármore negro, / E quando só tiveres por alcova ou conchego / Essa fossa vazia, essa cova chuvosa;

 

Quando a pedra, oprimindo o teu peito medroso / E os teus flancos agora indolentes, privar / Esse teu coração de bater e de amar, / E os teus pés de seguir um curso aventuroso,

 

O túmulo, que sabe todos os meus sonhos / (porque sempre o coval há-de entender o poeta), / Nessas noites sem fim onde já não há sono,

 

Dir-te-á: «De que serviu, cortesã incorrecta, / Nunca teres conhecido o que choram os mortos?» / - E os vermes vão roer-te a pele como um remorso.

 

Baudelaire, As Flores do Mal, assírio & Alvim, tradução de Fernando Pinto do Amaral.

publicado por adignidadedadiferenca às 23:14 link do post
26 de Julho de 2008

«Quando desaparece um artista é como se o arco-íris perdesse de repente uma cor. Quando a voz de um cantor desaparece, é como se faltasse de repente um instrumento com um papel importante num concerto. A voz quente, rouca e desesperada de Jacques Brel era inseparável das canções tristes, brutais, provocantes em que tomava o corpo. Voz que também sabia ser suave e meiga quando fazia emergir a corrente de uma ternura, profundamente oculta, tal como um rio volta à superfície depois de ter andado pelas entranhas da terra.

Brel amava com demasiado amor e amizade, o amor, as mulheres e os homens, e muito cedo se sentiu desiludido e ferido ao ver o que as mulheres e os homens (e ele mesmo) eram capazes de fazer da amizade e do amor. A sua irreprimível necessidade de solidão não era senão uma imensa ternura recalcada em virtude de tanta desilusão, um ímpeto de um coração imenso refreado pela experiência e pela razão. Vale mais rir e, até, troçar, para não chorar. (...) Quem se ficava pelas aparências julgava que Brel cantava a infelicidade de ser belga, ou que os seus alvos eram as beatas, as flamengas, os burgueses.

É claro que todos precisamos de dar corpo aos nossos ódios, mas o que Brel denunciou era, no fundo, a infelicidade de ser homem, a hipocrisia, a estupidez e a própria vida que faz de nós aquilo que nunca acreditámos que podíamos vir a ser, aquilo que jurámos a nós próprios que nunca seríamos: gordos, feios, carecas, cobardes – e velhos. »

 

Dominique Jamet (L’Aurore), de Jacques Brel, antologia poética. Assírio & Alvim

 

 

Brel foi crescendo, com o tempo, na arte da composição e interpretação, criando um universo musical (e teatral) de uma complexidade e riqueza cada vez maior e atingindo, na minha opinião, com «Ces Gens-Là», ou seja por volta de 1966, o domínio absoluto da sua linguagem em termos formais e de substância musical, numa empatia mais do que perfeita com François Rauber e com a exuberância e o requinte da sua esplêndida orquestra.

Numa frase: universal e intemporal, para ouvir vezes sem conta e o género de música que deve funcionar sempre como terapia para os momentos mais difíceis.

 ces gens-là

publicado por adignidadedadiferenca às 01:05 link do post
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