a dignidade da diferença
23 de Novembro de 2013

 

Reunindo neste livro (The Broken Estate) um conjunto de ensaios que foi escrevendo durante vários anos sobre literatura e crença, o crítico literário James Wood, começando por distinguir com clareza realidade e realismo no domínio ficcional, abeira-se do universo literário de um naipe muito amplo e diversificado de escritores – de Jane Austen a Flaubert, ou de Julian Barnes a W. G. Sebald, por exemplo – propondo uma análise subjetiva a respeito da forma como aqueles escritores vivem e pensam a literatura, em que esta, segundo o autor, funciona como uma espécie de crença, de religião. Com alguma polémica, originalidade interpretativa, engenho argumentativo e conhecimento profundo da matéria, James Wood possibilita ainda uma releitura de autores consagrados a respeito dos quais pensávamos que já tudo estava escrito. Eis um pequeno excerto da introdução ao livro que resume satisfatoriamente a unidade temática dos seus ensaios:

 

 

«A ficção é obviamente uma forma de mentir, e historicamente, como bem o sabemos, este comércio com a falsidade é motivo de desconforto com os leitores. A brutalidade da rejeição do “realismo” de Roland Barthes talvez seja, em última análise, religiosa (por muito que ele seja considerado um esteta formalista secular), e representa uma espécie de intensa desilusão moral pelo facto de a ficção recorrer a artifícios e a truques, representa um protestantismo com vontade de esmagar a parafernália falsa, a maquinaria religiosa da narrativa, os vitrais e os ornamentos enganadores e deixar que a luz do Sol brilhe através das janelas abertas (é interessante que o alvo frequente do formalismo francês seja o artístico Flaubert enquanto o mais transparente dos realistas, Tolstói, raramente seja mencionado, porque é muito mais difícil “expor” a sua arte desta maneira). E na verdade, o tipo de crença que a ficção nos exige é muito diferente da crença religiosa. A ficção pede-nos que acreditemos, mas a qualquer momento podemos escolher não acreditar.

 

 

Este é seguramente o verdadeiro secularismo da ficção – e o motivo por que, apesar de ser mágica, é realmente a inimiga da superstição, a destruidora de religiões, a escrutinadora da falsidade. A ficção desloca-se na sombra da dúvida, sabe que é uma mentira verdadeira, sabe que a qualquer momento os seus argumentos podem falhar. A crença na ficção é sempre uma crença “como se”. A nossa própria crença é metafórica – é apenas semelhante à verdadeira crença, e portanto nunca é uma crença por inteiro. No seu ensaio “Sufferings and Greatness of Richard Wagner”, Thomas Mann escreve que a ficção é sempre uma questão do “não muito”: “Para o artista as novas experiências da ‘verdade’ são novos incentivos para o jogo, novas possibilidades de expressão, e não mais do que isso. O artista acredita nelas, leva-as a sério, na medida das suas necessidades a fim de lhes dar a expressão mais completa e mais profunda. Em tudo isso, ele é muito sério, sério até às lágrimas – e, no entanto, não muito – e consequentemente, nem um pouco. A sua seriedade artística é de uma natureza absoluta, é ‘fazer de conta a sério’.»

17 de Novembro de 2013

 Ein Deutsches Requiem - Brahms/Otto Klemperer (1962)

 

 

Se a música de Brahms se inspira maioritariamente numa profunda inquietação perante o destino mortal do homem, não perde, contudo, por mais ténue que seja, a esperança na sua salvação. Ein Deutsches Requiem, escrito para soprano e barítono solistas, coro e orquestra – e concluído em 1868 –, é muito provavelmente um dos marcos do período romântico e o apogeu do amadurecimento artístico do seu autor. Se Brahms reflete nesta música as principais características estéticas das suas criações anteriores, aqui plenamente desenvolvidas, ampliando musicalmente o sentido dos textos utilizados (a letra do Requiem em latim e algumas passagens bíblicas em alemão sobre consolo e meditação), consegue expressá-las ainda com uma maior intensidade emocional e organizá-las de acordo com uma estrutura arquitetónica notável, conciliando admiravelmente num discurso aparentemente simples uma complexa teia de cores, efeitos corais e orquestrais. O maestro Otto Klemperer, com a cumplicidade das majestosas vozes solistas de Elisabeth Schwarkopf (soprano) e Fischer-Dieskau (barítono), proporciona, nesta gravação – de 1962 – de inigualável sensibilidade, uma experiência musical rica, tocante e profundamente comovente, sobrepondo-lhe uma prodigiosa atenção ao mais ínfimo detalhe musical. Uma gravação irrepetível e absolutamente imperdível.

 

 

09 de Novembro de 2013

 

 

Só esta semana é que tive a oportunidade, com a publicação de uma caixa de três DVDs, de dedicar a necessária atenção à obra, ainda curta e insuficientemente louvada, do cineasta James Gray. O que une The Yards (Nas Teias da Corrupção) e We Own the Night (Nós Controlamos a Noite) diz respeito ao retrato hipertenso do (sub) mundo do crime, da droga, dos negócios corrompidos, da violência ou dos jogos de poder. James Gray filma este universo, destacando, contudo, a existência de uma espécie de código de honra em defesa da família – mesmo quando os seus membros percorrem percursos antagónicos -, na tradição americana de John Ford ou de Francis Ford Coppola, mas aqui, porventura, ainda mais acentuado. Se as respetivas histórias, só por si, já possuem a estrutura e o engenho suficientes para imprimir uma dinâmica e um ritmo assinaláveis, é, no entanto, a poesia do olhar que transparece através da câmara, assim como a sua densidade dramática (tanto na utilização da cor, como na subjetividade dos planos), que confere uma evidente personalidade ao cinema de Gray.

 

 

Por outro lado, o cineasta consegue ainda, num estilo silencioso e com uma prodigiosa contenção de meios, elevar as relações entre as personagens a um nível de emoção e intensidade tais que, no cinema americano, só o brilho do olhar de David Cronenberg - no ponto em que este o deixou em A History Of Violence e Eastern Promises - lhe é comparável. Por sua vez, Two Lovers (Duplo Amor) foge razoavelmente às características mais básicas dos filmes anteriores e narra, desta vez, sob um manto de romantismo, a história melodramática de Leonard, que se divide entre duas paixões. O filme, porém, escapa elegantemente aos estereótipos do cinema romântico contemporâneo e atravessa, ainda que de forma mais subtil, o universo típico do cinema de James Gray. São os casos da continuada parábola do filho pródigo, das personagens perturbadas e atormentadas, e da exploração, mais uma vez, de um conceito muito próprio da família americana. Aguarda-se pois, com redobrado interesse, o mais recente trabalho do cineasta, The Immigrant, ainda não estreado no nosso país.

 

 

03 de Novembro de 2013

  

«Não só no mundo dos negócios, mas também no das ideias, promove o nosso tempo “uma verdadeira liquidação”. Tudo se adquire por um preço tão irrisório, que nos resta perguntar se haverá alguém que acabe por fazer uma oferta. Qualquer “marqueur” especulativo que conscienciosamente aponte o assinalável percurso da filosofia mais recente, qualquer professor livre, assistente, estudante, alguém que esteja por dentro ou por fora da filosofia, ninguém pára para duvidar de tudo, antes avança. Seria porventura inoportuno e extemporâneo perguntar-lhes onde pensam que vão propriamente chegar, mas é sinal de cortesia e modéstia aceitar como facto consumado que duvidaram de tudo, pois caso contrário soaria estranho dizer que “avançaram”. Todos fizeram este movimento preliminar e presumivelmente com tanta facilidade, que nem consideraram necessário deixar cair uma palavra sobre o assunto; pois nem mesmo aquele que angustiado e inquieto procurasse um pequeno esclarecimento encontraria uma coisa parecida, um alvitre sugestivo, uma pequena regra dietética, sobre como proceder perante esta monstruosa tarefa.»

Søren Kierkegaard, Temor e Tremor (1843).

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